Lei contra “golpe do baú” é questionada na Justiça; hoje ela proíbe regime de comunhão de bens para pessoas que se casarem com mais de 70 anos

A regra dos septuagenários foi instituída no ano 2010, alterando o Código Civil de 2002, para prevenir o que se convencionou chamar de “golpe do baú” — expressão pejorativa, de cunho machista, usada para definir quando uma mulher se casa com um homem mais velho com o intuito de ficar com sua herança. A ideia era, para além de supostamente proteger o patrimônio da pessoa idosa, também preservar a herança dos filhos, mas a norma passou a ser questionada e foi parar na corte.

O caso que chegou ao STF e poderá ter reconhecida sua repercussão geral — ou seja, indicar decisões futuras sobre episódios semelhantes— ocorreu na cidade de Bauru, no interior de São Paulo. Trata-se de um casal composto por um homem e uma mulher que mantiveram uma união estável de 2002 a 2014, ano em que ele morreu. À época, a primeira instância reconheceu a mulher como herdeira, mas ela acabou perdendo o processo quando os filhos do marido recorreram ao Tribunal de Justiça de São Paulo. Lá aplicou-se o regime de separação de bens, uma vez que ele já tinha mais de 70 anos quando a relação foi selada. Na peregrinação por Justiça, o caso foi parar no Superior Tribunal de Justiça e, agora, no STF.

Segundo a advogada Marilia Golfieri Angella, sócia-fundadora do Marília Golfieri Angella – Advocacia Familiar e Social, especialista em Direito de Família, Gênero e Infância e Juventude, mestranda em Processo Civil pela Faculdade de Direito da USP e professora colaboradora do FGV Law, a discussão extrapola a questão da proteção do patrimônio. Para ela, esse debate precisa ser feito do ponto vista da autonomia da pessoa idosa.

O próprio Estatuto da Pessoa Idosa foi alterado em julho deste ano para a substituição as palavras “idoso” ou “idosos” por “pessoa idosa” ou “pessoas idosas”, respectivamente. “As recentes discussões a respeito deste caso em julgamento no STF caminham no mesmo sentido daquelas destinadas ao estudo da dignidade humana da pessoa idosa e da necessidade de garantia de maior respeito e autonomia dessa parcela da população”, afirma.

“A discussão sobre a alteração do termo ‘idoso’ foi iniciada a partir do Projeto de Lei 72/2018 tendo em vista a necessidade de adequação da terminologia em respeito à luta das pessoas idosas, assim como ocorre com as pessoas com deficiência, que também vêm encontrando respaldo na legislação para serem mais valorizadas a partir de um tratamento adequado, sem preconceitos e rotulações, promovendo inclusão social e criação de políticas públicas protetivas, também destinadas a uma maior participação comunitária”, comenta Marilia Golfieri Angella.

De acordo com a especialista no tema, quando a lei presume, de forma indistinta, a absoluta incapacidade das pessoas maiores de 70 para decidir sobre o regime patrimonial aplicável às suas uniões familiares, sejam elas através do casamento formal ou da mera união estável, “a regra afronta diretamente a autonomia destas pessoas, ocorrendo um esvaziamento da capacidade natural de decidir sobre os atos mais banais da vida civil supostamente em prol da proteção patrimonial”.

“Em verdade, a norma que buscava promover a proteção patrimonial da pessoa, quiçá de uma possível herança, age em desfavor da autonomia e do respeito da vontade da pessoa idosa, ainda mais atualmente, com o avanço dos pactos sociais e da medicina, que promovem aumento da expectativa de vida e fazendo com que pessoas com setenta anos ainda estejam completamente ativas e plenamente conscientes de seus atos”, analisa.

Como ocorre no caso posto em julgamento pelo STF, o casal de idosos viveu por mais de 10 anos junto e, a partir do momento da morte do marido, seus filhos começaram a discussão contra a companheira com finalidade puramente patrimonial. “O que acaba acontecendo é justamente como no caso do STF: a companheira cuida no final da vida, muitas vezes assumindo importante função de cuidado e, após a morte, os filhos deixam-na sem nada”, completa.

Sobre a necessidade de se observar o caso também por um viés de gênero, Marília explica que “há desrespeito não só ao que o pai provavelmente desejaria em vida, que seria a proteção de sua companheira, mas possível desrespeito à dignidade desta mulher, que sofre o luto e enfrenta uma nova disputa contra a família. Há discriminação etária, ante o desrespeito da vontade do pai, e de gênero, a qual precisa ser analisada adequadamente pela sociedade, pelo legislativo e pelo Poder Judiciário a partir da ótica do novo Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, lançado pelo CNJ recentemente”.

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